Reflexão para o mês de Janeiro
Janeiro
Salmo 139 (138): Caminho de eternidade
Poucas passagens bíblicas exprimem com tanta força e subtileza como o Salmo 139 o quanto Deus está próximo do homem: «Senhor, tu examinaste-me e conheces-me», diz o primeiro verso. Segundo o salmo, Deus não observa à distância, mas procura os indivíduos. Não os conhece parcial ou unilateralmente, mas conhece a totalidade da sua existência de forma única.Senhor, tu examinaste-me e conheces-me,sabes quando me sento e quando me levanto;à distância conheces os meus pensamentos.estás atento a todos os meus passos.Ainda a palavra me não chegou à boca,já tu, Senhor, a conheces perfeitamente.Tu me envolves por todo o ladoe sobre mim colocas a tua mão.É uma sabedoria profunda, que não posso compreender;tão sublime, que a não posso atingir!Onde é que eu poderia ocultar-me do teu espírito?Para onde poderia fugir da tua presença?Se subir aos céus, tu lá estás;se descer ao mundo dos mortos, ali te encontras.Se voar nas asas da auroraou for morar nos confins do marmesmo aí a tua mão há-de guiar-mee a tua direita me sustentará.Se disser: «Talvez as trevas me possam esconder,ou a luz se transforme em noite à minha volta»,nem as trevas me ocultariam de tie a noite seria, para ti, brilhante como o dia.A luz e as trevas seriam a mesma coisa!Tu modelaste as entranhas do meu sere formaste-me no seio de minha mãe.Dou-te graças por tão espantosas maravilhas;admiráveis são as tuas obras.Quando os meus ossos estavam a ser formados,e eu, em segredo, me desenvolvia,tecido nas profundezas da terra,nada disso te era oculto.Os teus olhos viram-me em embrião.Tudo isso estava escrito no teu livro.Todos os meus dias estavam modelados,ainda antes que um só deles existisse.Como são insondáveis, ó Deus, os teus pensamentos!Como é incalculável o seu número!Se os quisesse contar, seriam mais do que a areia;e, se pudesse chegar ao fim, estaria ainda contigo.Ó Deus, faz com que os ímpios desapareçam;afasta de mim os homens sanguinários.Aqueles que maldosamente se revoltam,em vão se levantam contra ti.Não hei-de eu, Senhor, odiar os que te odeiam?Não hei-de aborrecer os que se voltam contra ti?Odeio-os com toda a minha alma.Considero-os como meus inimigos.Examina-me, Senhor, e vê o meu coração;põe-me à prova para saber os meus pensamentos.Vê se é errado o meu caminhoe guia-me pelo caminho eterno.(Salmo 139)
À medida que o salmo avança, o tom torna-se mais insistente: «Onde é que eu poderia ocultar-me do teu espírito? Para onde poderia fugir da tua presença?». O salmista imagina-se em fuga em todas as direcções até se esconder nas trevas, em vão, para escapar a Deus. A mão de Deus não está sobre ele, como anteriormente (vs. 5). Agora, sustenta-o (vs.10). Esta constatação assusta ao mesmo tempo que tranquiliza: não é possível escapar a Deus. Por outro lado, Deus nunca abandona as pessoas, independentemente do facto de estas se afastarem dele.
O texto caminha em direcção ao interior do ser humano: «Tu modelaste as entranhas do meu ser», diz, literalmente, o verso 13! Na linguagem sempre concreta da Bíblia, as entranhas estão associadas à capacidade de decidir. De forma a distinguir o que é justo do que não o é, os seres humanos devem olhar para o mais profundo de si próprios, mais profundo até do que os seus corações – é isso que o termo «entranhas» pretende dizer. É uma realidade próxima daquela que muitos dos nossos contemporâneos chamam de consciência moral. Notavelmente, é aqui, no coração do salmo, que encontramos a única referência ao louvor: «Dou-te graças por tão espantosas maravilhas». O salmo sugere que Deus está próximo de nós precisamente no nosso desejo e na nossa procura do que é bom, justo e verdadeiro? Teremos, talvez, a tentação de fugir ou de nos mantermos longe desta procura – que é, por vezes, tão árdua que a vida parece mais simples sem ela – mas podemos, também, permanecer admirados e considerar essa busca como um dom, dando graças a Deus por ela.
A última parte do salmo é, talvez, a mais surpreendente. Inesperadamente, o salmista pede a Deus que erradique os ímpios e proclama o seu ódio. Ainda que seja muito chocante, esta atitude é frequentemente considerada positiva no Antigo Testamento, na medida em que revela uma rejeição do mal e, de igual modo, uma aproximação ao bem. Mesmo se o apelo do Evangelho a amar os nossos inimigos torna difícil, ou até mesmo impossível, aos discípulos de Jesus a tarefa de orar estes versos, podemos observar a luta de que são testemunhas. Crer e viver num mundo ferido e muitas vezes violento é, afinal, a nossa própria luta. No final de contas, o salmista não se demora nos conflitos com os outros, mas continua a dirigir a sua oração a Deus. O seu ardor condu-lo a, inesperadamente, interrogar-se sobre a sua própria inocência e o seu caminho e pede a Deus: «Examina-me, Senhor, e vê o meu coração». Porque é Deus que, repetidamente, abre na nossa existência um caminho que não é apenas mais um mas é o «caminho eterno».


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